5 de outubro de 2023
A revisão do Plano Diretor Estratégico da cidade de São Paulo (PDE) e, agora, da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (também chamada Lei de Zoneamento) tem gerado grandes debates na mídia, bem como comentários e críticas de entidades da sociedade civil, de urbanistas e de representantes do setor imobiliário. Esse fenômeno, aliás, não é exclusivo da capital paulista, pois o urbanismo e a forma de planejar e viver nos núcleos urbanos despertam interesse cada vez maior.
Entretanto, esse debate em São Paulo tem sido marcado por um danoso antagonismo que, de forma indevida, muitas vezes coloca os autoproclamados defensores da cidade em oposição aos chamados defensores dos interesses econômicos. Como se verá, trata-se de uma narrativa simplória, que ofusca questões muito mais complexas, esconde contradições e dificulta o necessário diálogo. Traz, ainda, excessiva judicialização das normas, paralisando os projetos de desenvolvimento urbano e tendo como grande perdedora a população.
Praticamente todas as recentes iniciativas de planos urbanísticos na cidade foram submetidas a questionamento judicial: a revisão do PDE, a Lei de Zoneamento, os projetos de intervenção urbana de Jurubatuba, de Pinheiros, do Setor Central, a Operação Urbana Água Branca. Em muitos desses casos houve concessões de liminares, depois revistas pelo Poder Judiciário, reconhecendo a validade dos procedimentos, após longa paralisação. Como o Judiciário não pode entrar no mérito das normas urbanísticas, em razão da separação dos Poderes, os opositores dos projetos trazem alegações genéricas como “impacto ambiental” ou “alteração do cenário urbano”. Ora, toda intervenção urbanística, ou qualquer nova obra, traz algum tipo de implicação ambiental ou modificação do cenário urbano, mas não se pode ignorar que o direito à moradia é assegurado pela Constituição como um dos direitos sociais, como também o são a educação, a saúde e o trabalho, todos eles dependentes de intervenções no espaço urbano.
Tornou-se comum também, para interromper os processos legislativos, alegar falta de participação popular, que se dá na forma de audiências públicas. Neste caso, argumenta-se: que foram poucas as audiências (mesmo quando realizadas mais do que as duas exigidas pela Lei Orgânica do Município), ou que não houve ampla divulgação, ou que o quórum de comparecimento foi baixo, ou que não foram publicados estudos prévios que embasassem as propostas, ou foram publicados com pouca antecedência, e assim por diante. Na verdade, aqueles que não concordam com a mudança pretendida tentam inviabilizá-la por todos os meios, “em nome do bem comum”.
Um exemplo disso é a revisão intermediária do PDE de São Paulo, que por imposição legal deveria ter ocorrido em 2021. Por causa da pandemia de covid-19, ao longo de 2020 a Prefeitura de São Paulo estruturou um portal para colocar à disposição os textos e informações, realização de audiências públicas virtuais e coleta de sugestões da população. Embora esse procedimento facilite o amplo acesso às informações e dê mais tempo para reflexão e debates, foi combatido sob a alegação de que não permitiria participação popular, por ausência de internet de boa qualidade para grande parte da população. Ora, paradoxalmente, entre as dez maiores lives do mundo em 2020, nada menos do que oito foram no Brasil.
No debate urbanístico, termos como adensamento ou verticalização são muitas vezes tratados como nocivos. Entretanto, é justamente sem adensamento ou verticalização que a cidade se torna mais caótica e desumana, porque obriga as pessoas a morarem cada vez mais longe das áreas centrais. O PDE induz o adensamento, isto é, maior aumento de área construída nas áreas próximas aos eixos de transporte público de massa (os chamados eixos). Como os terrenos têm tamanho limitado, o adensamento somente pode ser obtido por meio da verticalização, ou seja, a construção de edifícios com diversos andares. Isso tem por objetivo fazer com que a nova oferta de moradias ocorra justamente em locais bem atendidos pela infraestrutura de transporte, pois, do contrário, o crescimento da cidade precisaria se expandir para locais mais periféricos, forçando as pessoas a longas viagens.
Como os eixos, onde se pode verticalizar, são porções reduzidas da cidade (em torno de 6% da área urbana), as novas construções estão muito concentradas em quadras específicas, o que fica evidente em bairros como Pinheiros, Brooklin, Ipiranga, entre outros. Essa concentração, somada à alta demanda por moradias, fez com que os preços dos terrenos disparassem, até porque se tornam cada vez mais escassos. O que se observa é o preço cada vez maior dos apartamentos, embora as incorporadoras tenham margens de lucro cada vez mais reduzidas (como se constata de seus balanços publicados). Na verdade, em muitos casos, “a conta já não fecha” e a classe média, mesmo a média alta, está ficando impossibilitada de adquirir um apartamento no Centro expandido. A elevação do custo de moradia não é boa nem para as incorporadoras nem para os adquirentes, apenas para especuladores. Aqui, outro paradoxo: às vezes as mesmas pessoas que se espantam com a elevação do preço dos imóveis condenam, sem fazer a devida relação, as propostas para aumento das áreas de adensamento.
Neste cenário, fica evidente a necessidade de ampliação dos eixos, o que tem sido tachado de ceder às construtoras, sem considerar a demanda por moradias e o déficit habitacional. Nem sempre de forma consciente, mas às vezes sim, aqueles que já estão instalados em seus confortáveis apartamentos criticam as novas construções que visam a atender a quem ainda busca um lar para a família, principalmente se o novo prédio prejudicar a vista de sua sacada. É preciso discernimento para identificar as reais intenções dos críticos, que podem estar defendendo interesses pessoais, numa atitude conhecida internacionalmente como Nimby (not in my backyard), algo como “não no meu quintal”.
Outro aspecto relevante diz respeito às vagas de garagem. Não se discute que o trânsito da cidade é intenso e que é correta a tendência de incentivar o transporte público ou individual não motorizado. Ocorre que nosso transporte público ainda é precário e não atende adequadamente à população, fazendo com que muitas famílias ainda tenham clara dependência do automóvel. Fazia-se necessário um ajuste na oferta de vagas, como realizado na revisão do PDE, embora ainda permaneçam severas restrições.
Para condenar as vagas e a verticalização, certos censores se valem de comparações com outras grandes cidades do mundo. Salientam que, quando se vai a Nova York, não se usa o carro, mas não mencionam que há, quase literalmente, uma estação de metrô em cada esquina. Elogiam o limite de oito andares na região central de Paris, regra que foi indevidamente transportada para São Paulo, onde na maior parte do território a construção está restrita a até oito andares. Tais comparações distorcem os aspectos demográficos, pois num período de pouco mais de cem anos a população de Paris não cresceu, a de Londres aumentou cerca de 50% e a de Nova York dobrou, enquanto em São Paulo a população cresceu mais de 20 vezes.
A revisão do PDE foi muito combatida por abrir espaço para ampliação das áreas de adensamento, mas tal ampliação não é automática, cabendo à revisão da Lei de Zoneamento indicar as quadras de ampliação dos eixos. Infelizmente, o texto inicial proposto pelo Executivo (a ser analisado pela Câmara) é omisso quanto a tal ampliação. A proposta até reduz as áreas de adensamento, excluindo dos eixos áreas neles contidas desde 2014, afrontando as diretrizes do PDE. Traz, ainda, critérios subjetivos, quando a lei deveria ser precisa, para permitir sua correta aplicação. Por exemplo, exclui dos eixos áreas que “tiverem relação com a ambiência urbana, possuírem características singulares do ponto de vista da morfologia urbana ou foram constituídas por conjuntos urbanos dotados de identidade e memória” e – vejam a incongruência – “mesmo que não reconhecidas pelos órgãos de preservação competentes”. De uma só vez, elimina a objetividade normativa e esvazia a competência do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp) e do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico é um órgão subordinado à Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo (Condephaat), inconstitucionalidade a ser revista pela Câmara Municipal, se não alterada pelo Executivo.
O planejamento urbano é de grande importância para o desenvolvimento econômico, social e humano. Para que seus resultados atendam às necessidades dos habitantes, não pode ser conduzido por uma única corrente de pensamento, baseado apenas nas bandeiras dos ecologistas, tampouco dirigido pelos interesses imobiliários, definidos por urbanistas ou por moradores que visam a congelar os bairros onde residem. É imperioso que haja uma compreensão recíproca das demandas por habitação, por melhoria de transporte e qualidade de vida, ouvindo a academia, a população, os movimentos de moradia e o setor produtivo.
É obrigação dos empreendedores desenvolverem seus projetos dentro dos requisitos normativos. Aos funcionários públicos, cumpre analisar e aprovar os projetos que atendam a tais requisitos, sendo ilegais exigências que extrapolam aquelas contidas na lei, feitas por receio ou por entendimento próprio. E aos órgãos de controle, inclusive ao imprescindível Ministério Público, cabe fazer o devido exame para contestar as normas e aprovações manifestamente ilegais, o que não significa combatê-las em juízo por discordar do conteúdo da norma ou do mérito do ato administrativo. A litigiosidade e o antagonismo afastam o entendimento necessário para harmonizar a produção de moradias e espaços de trabalho em nossa dinâmica cidade, de forma compatível com a função socioambiental e o desenvolvimento humano.
RODRIGO BICALHO É ADVOGADO, MEMBRO DO CONSELHO JURÍDICO DO SECOVI/SP, DO SINDUSCON/SP E DO CONSELHO SUPERIOR DA INDÚSTRIA DA CONSTRUÇÃO DA FIESP
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