8 de agosto de 2024
A participação de incorporadoras nas emissões de certificados de recebíveis imobiliários (CRI) dobrou nos últimos meses, após mudanças regulatórias que fecharam as portas para companhias fora do setor. Em meio à redução da participação da poupança no crédito imobiliário, a expectativa do mercado é que esses títulos ganhem ainda mais espaço no financiamento das empresas que atuam na construção e na venda de imóveis.
Se no início do ano a parcela de incorporadoras no total de emissões de CRI era equivalente a 7%, em junho essa participação chegou a 14%, segundo um levantamento feito pela fintech Virgo e obtido pelo Valor. O número considera incorporação com e sem obras. O aumento foi um dos maiores entre os segmentos que captam recursos com CRI, caso também de shopping centers e multipropriedade.
“Houve uma diminuição significativa na participação do segmento corporativo, onde se encontravam as empresas fora do setor imobiliário, e de bancos. Essas ofertas deram lugar a operações puramente imobiliárias”, afirma Daniel Magalhães, presidente da Virgo.
A mudança reflete uma resolução publicada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), em fevereiro, que restringiu os tipos de lastro elegíveis para as emissões dos CRI e de outros títulos incentivados, que oferecem o benefício da isenção fiscal para os investidores. A partir daí, algumas operações foram barradas, como as que eram feitas por bancos, redes de farmácia e de restaurantes, e lastreadas em contratos de aluguel.
O esperado, em um primeiro momento, era que o mercado encolhesse. Mas o que se viu, na prática, foi um aumento tanto em termos de número de ofertas quanto em volume captado. Considerando-se o período de janeiro a junho, foram feitas 217 novas operações de CRI, o que representa um aumento de 20% ante o registrado no mesmo intervalo de 2023, segundo o levantamento da Virgo. Se no ano passado, eram, em média, 24 novas operações por mês, neste ano, o número foi a 36.
As ofertas de CRI movimentaram no primeiro semestre R$ 31,35 bilhões, segundo a Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima). O volume é quase 180% superior ao registrado um ano antes. Só de março a junho - período após a mudança das regras -, as ofertas somaram R$ 19,69 bilhões. No mesmo intervalo de 2023, o volume foi de R$ 9,83 bilhões.
“O pânico inicial de alguns, que esperavam que o mercado de CRIs acabasse, não se provou verdadeiro”, diz Flávia Palacios, diretora da securitizadora Opea. Ela lembra que uma das maiores preocupações do mercado, nos dias seguintes à publicação das novas regras, era com a proibição do uso dos recursos para o reembolso de gastos, ou seja, para compensar gastos passados - que era comum entre companhias do setor imobiliário.
Na prática, afirma, a questão do reembolso não se mostrou um desafio. As estruturas foram adaptadas, e as empresas passaram a captar para gastar dali pra frente. “As operações não morreram, elas foram transformadas”, diz Palacios.
O aumento da presença das incorporadoras nas emissões ocorreu após as securitizadoras e outros agentes que atuam na estruturação das ofertas se voltarem para esse tipo de empresa, inclusive na busca de novos nomes. “Elas olharam para os segmentos que puderam continuar a captar após as novas regras. O canhão se voltou para incorporadoras com projetos bons, potencial de venda e obras iniciadas”, diz Felipe Ribeiro, sócio e diretor de investimentos alternativos do Clube FII.
Para Palacios, a expectativa de redução dos recursos para financiamento das incorporadoras por parte dos bancos também fez com que mais companhias buscassem os CRI. “Notamos um grande aumento na busca por financiamento de construções, em substituição às operações tradicionais, de financiamento bancário à produção”, diz.
Entre as incorporadoras que levantaram recursos com CRI recentemente está a pernambucana Moura Dubeux, que captou R$ 250 milhões em julho. Os papéis foram lastreados em debêntures emitidas em duas séries, com taxa equivalente a CDI mais 1,6% ao ano e IPCA mais 8,06% ao ano. O prazo foi de cinco anos.
A empresa quis aproveitar o aumento do fluxo de recursos para o setor imobiliário após a mudança nas regras dos títulos, segundo Diego Villar, diretor-presidente da incorporadora. “O CRI está hoje mais próximo da sua natureza, que é de financiar o desenvolvimento imobiliário”, afirma. “Por muito tempo, as incorporadoras ficavam reféns dos projetos que eram financiados por bancos que tinham acesso à poupança. Só que essa solução sempre ficava limitada ao apetite de risco do banco, de quanto o banco queria se expor em determinada região”, diz. Com o desenvolvimento de instrumentos como o CRI, afirma, as empresas passaram a diversificar as fontes de recursos mais facilmente.
A maior parte do financiamento das empresas do setor imobiliário vem dos bancos. Em junho deste ano, os recursos do SBPE (financiamento com recursos da caderneta) correspondiam a 34% do “funding” do setor, com R$ 763 bilhões. Há dois anos, porém, essa participação era maior, de 44%, conforme dados da Abecip, a associação das instituições financeiras que atuam no crédito imobiliário.
Por outro lado, a participação dos CRI no financiamento aumentou de 7% em junho de 2022, com R$ 118 bilhões, para 9% em junho de 2024, com R$ 208 bilhões. Os fundos de investimento imobiliário (FIIs) também ampliaram a participação, de 9% para 10% na mesma base de comparação, passando de R$ 168 bilhões para R$ 237 bilhões.
Após várias perdas de recursos desde 2021, a poupança SBPE registrou em maio e junho captação líquida de R$ 11,2 bilhões. Durante coletiva de imprensa sobre os dados do primeiro semestre, em julho, Sandro Gamba, presidente da Abecip, disse que não vê uma tendência de redução do volume da poupança, “mas há uma clareza de que a poupança não deve voltar aos patamares anteriores em termos de participação no financiamento”.
Para Palacios, da Opea, “o mercado de capitais não deve substituir os bancos no financiamento das companhias, mas, cada vez mais, complementar o montante de crédito necessário para o setor”.
Entre os entraves para o maior uso dos CRI para financiamento das companhias está o custo. “O mercado de capitais brasileiro, e não apenas o de securitização imobiliária, é um mercado caro para acessar”, diz Walter Pellecchia Neto, analista sênior de estruturação da Vórtx. Para ele, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) tem atuado na última década para tornar o financiamento via mercado mais acessível, com iniciativas como o “equity crowdfunding”. Em um futuro próximo, afirma, espera-se que sejam discutidas maneiras de tornar o acesso ao CRI mais simples e menos custoso. “Não são todas as empresas que têm condições de, por exemplo, contratar um banco grande com capilaridade para acessar investidores”, afirma.
A possibilidade do crédito via mercado de capitais ser mais caro pode desincentivar algumas companhias. Há, porém, o lado positivo do uso do CRI, como o perfil dos investidores nesses papéis, como lembra Palacios, da Opea. “Geralmente, quem investe em CRI envolvendo projetos é o investidor institucional, que entende melhor das dinâmicas. É o tipo de operação que requer um olhar mais qualificado”, diz.
Quando os papéis envolvem um projeto imobiliário, é possível que o planejamento mude ao longo do tempo. O excesso de chuvas, por exemplo, pode atrasar o desenvolvimento da obra. O aumento excessivo dos preços dos materiais pode afetar o orçamento. “Quando o investidor é um gestor qualificado, que entende essas nuances, a empresa pode ter um pouco mais de facilidade na hora de renegociar os termos”, diz Palacios.
No primeiro semestre, cerca de 80% dos CRIs para incorporação com obras ficaram na mão de fundos, conforme os dados da Virgo. “O melhor financiador para as obras é o investidor institucional. São os fundos, que têm crescido ano após ano, seja com novas captações ou com retorno de capital de projetos financiados”, reforça Magalhães.
Carolina Avancini, sócia da Clave Capital, acredita que as ofertas de CRIs por incorporadoras devem continuar crescendo ao longo de 2024. “O que tem mais aparecido nas operações é o segmento residencial, com empresas que atuam com o Minha Casa Minha Vida e com as que trabalham com projetos para alta renda, que esperam ver um aumento das vendas no segundo semestre”, afirma.
O amadurecimento da indústria também deve continuar a atrair novos nomes. “Estamos saindo de um momento mais artesanal e caminhando para uma era industrial”, diz Ribeiro. Se há alguns anos, poucas securitizadoras faziam operações de CRI, hoje a indústria é mais robusta, afirma. Do lado dos investidores, houve um acréscimo significativo no número de fundos imobiliários voltados exclusivamente para esse tipo de título. “Há seis anos, o país tinha cerca de 15 fundos imobiliários de CRI, hoje são mais de 100. É um mercado bem mais vivo”, afirma.
Fonte: Valor Econômico
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